Há 30 anos, no dia 11 de dezembro de 1983, o Grêmio derrotava o Hamburgo em Tóquio por 2 a 1 para conquistar o título mais importante da sua história: o Mundial Interclubes. Disso ninguém dúvida, assim como é impossível negar o protagonismo de Renato e a qualidade de nomes como Mário Sérgio. O que não significa que a façanha esteja livre de interrogações. Principalmente devido ao adversário. O passar das décadas aumentou os questionamentos a respeito dos alemães, a ponto de virarem grande enigma e também alvo de cornetas dos rivais regionais. 
Afinal, o Hamburgo é um time pequeno? Foi a Tóquio por que o campeão europeu não queria disputar o Mundial? E, ao ir ao Japão, desprezou o torneio, prescindindo inclusive de seus titulares? Entre tantas perguntas, o GloboEsporte.com tratou de separar cinco delas e montar um raio-X do oponente da partida mais importante do Grêmio. E dessa radiografia saíram mitos e verdades aqui expostos, após pesquisas em jornais brasileiros e alemães, além de consultas a três jogadores que estiveram presentes em solo oriental. 
Um resumo rápido: o Hamburgo viveu seu auge no início dos anos 1980, mas, após vencer o campeonato europeu, entrou num lento processo de decadência técnica e desgaste entre treinador e jogadores - tudo agravado por vendas, lesões e preocupação com o campeonato alemão. Assim, quando se procurou priorizar a Weltpokal, ou Copa do Mundo em alemão, acabou sendo tarde demais. Sorte do Grêmio. Abaixo, entenda passo a passo: 
Se as vitórias de clubes sul-americanos nas três edições anteriores  - o Nacional, do Uruguai, superou o Nottingham Forest em 1980, o Flamengo de Zico bateu o Liverpool em 81, e o Peñarol venceu o Aston Villa em 82 - são indícios de uma possível falta de comprometimento dos europeus com a competição, os jogadores do Hamburgo logo trataram de negar essa hipótese. Em uma entrevista concedida a cinco dias da final, o meia e capitão Felix Magath ironizou as derrotas e prometeu comprometimento com a partida. Mesmo discurso ele repete 30 anos depois, em entrevista ao GloboEsporte.com: 

- É claro que estávamos motivados após conquistar a Copa da Europa. A viagem para Tóquio e a partida contra o Grêmio eram ainda mais motivantes. Todos estávamos muito ansiosos para o confronto. 

Enquanto os jogadores se preparavam, os torcedores faziam questão de assistir à final em solo japonês. Segundo uma coluna do jornal Correio do Povo de 1º de dezembro, ‘as agências de viagem de Tóquio confirmam que virão mais torcedores de Hamburgo do que do Brasil’. Mais tarde, em sua crônica após a partida para a Folha da Tarde, o jornalista Marco Antônio Schuster confirmou a informação: ‘O Hamburgo tem torcida maior. O Grêmio tem uma charanga composta por japoneses e auxiliada por brasileiros’. 
A reportagem do GloboEsporte.com também consultou o ex-centroavante Dieter Schatzchneider, que chegou a ser repreendido por tentar jogar lesionado. 

- As minhas lembranças do Japão não são muito boas. Eu tinha um problema muscular na coxa e fui barrado. Me  lembro de tentar tirar as ataduras sem a permissão do médico e do preparador para jogar. Quando o técnico Happel ficou sabendo, me deu uma bronca durante uns 15 minutos, falando que eu não estava sendo profissional com minha lesão - relembra o atual olheiro do Hannover 96. 

Ernst Happel tinha uma motivação especial para a conquista: sagrar-se bicampeão mundial. O técnico conhecido por sua seriedade e dureza ao lidar com os jogadores havia vencido o Mundial Interclubes em 1970 com o Feyenoord diante do Estudiantes de La Plata. 

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A vitória gremista no confronto começou a se desenhar dias antes da final em Tóquio. Mesmo fora de campo, o Grêmio levou vantagem sobre o rival em um ponto fundamental: o planejamento para o Mundial. O Tricolor deixou de lado o Campeonato Gaúcho daquele ano e reservou um hotel em Gramado, na Serra Gaúcha, para servir como sede da concentração da equipe. Já aúnica iniciativa dos alemães na preparação para a partida foi um amistoso disputado no Marrocos, no final de novembro. O que era para ser uma espécie de teste para o Mundial teve o efeito contrário. O técnico Ernst Happel sacou o experiente líbero Hyeronimus logo aos dois minutos de partida, após falha que causou o gol do rival. O Hamburgo acabou virando o jogo, mas a substituição acirrou os ânimos entre comissão técnica e jogadores. O resultado foi resumido pelo treinador em uma frase: ‘O teste foi uma grande porcaria’. 

Enquanto os gremistas tinham tempo de sobra para  treinos táticos e físicos e para analisar o adversário, o Hamburgo tinha dois jogos pela Bundesliga na semana da viagem para Tóquio. O clube dividia a liderança do campeonato com o Stuttgart e o Bayern de Munique, todos com 21 pontos, e precisava vencer os confrontos para se manter na ponta da tabela após a eliminação precoce na Copa da Europa para o Dínamo Bucareste, da Romênia. 
Contra o primeiro adversário, o lanterna Eintracht Frankfurt, em 3 de dezembro, empate sem gols fora de casa. Quatro dias mais tarde, outra decepção. Derrota por 2 a 0 para o Stuttgart no Volksparkstadion, na véspera do embarque para o Japão. De quebra, os atacantes Schatzchneider e Thomas Von Heesen saíram de campo lesionados. A má fase da equipe e a fraca atuação da equipe diante de um concorrente direto levou o Hamburger Abendblatt, um dos principais jornais da cidade, a classificar a atuação como ‘um sinal claro de que o clube está perto do abismo’. Como se não bastasse, perdia sua invecibilidade de 48 jogos em casa. Segundo o jornal Zero Hora, em 6 de dezembro, os jogadores assistiram ao compacto da final da Libertadores de 1983, entre Grêmio e Peñarol.  Foi a primeira vez que os jogadores viram imagens do rival. 

- Ainda não existia internet naquela época, a comunicação não era tão simples quanto é hoje. Ainda assim, tínhamos algumas informações importantes sobre o Grêmio - explica Magath trinta anos mais tarde. 

O Hamburgo chegaria a Tóquio em 9 de dezembro, após mais de 20 horas de viagem (o jogo seria dia 11).  Sem tempo hábil para a recuperação dos jogadores, o Hamburgo fez apenas um treino de reconhecimento do gramado do Estádio Olímpico de Tóquio, na véspera da partida.  

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- Nós somos bons demais para o futebol desse país. 

A frase dita pelo presidente Wolfgang Klein retrata a magnitude com que era tratado o time que conquistou os principais títulos do Hamburgo. A chamada 'Era de Ouro' do clube começou com a conquista da Bundesliga na temporada 1978/79  e culminou com a conquista da Copa da Europa, atual Liga dos Campeões, em 1983. 

O primeiro título do campeonato nacional daquela geração garantiu à equipe a oportunidade de disputar sua primeira Copa da Europa. A estreia trouxe, também, a primeira final, após goleada histórica sobre o Real Madrid por 5 a 1 na semi. A taça não viria daquela vez. Dois anos após o vice, os dirigentes alemães optariam por um nome com experiência no torneio. O austríaco Ernst Happel foi o escolhido para a missão. Quando chegou em 1981, o austríaco já tinha um currículo repleto de conquistas. Além do mundial e da Copa da Europa com o Feyenoord, em 1970, o austríaco havia liderado a seleção holandesa no vice-campeonato mundial em 1978. 

O zagueiro Ruud Krol, seu comandado com a Holanda, retrata as peculiaridades de sua personalidade em entrevista reproduzida pela Zero Hora no dia 2 de dezembro de 1983, chamando-o de 'víbora venenosa'. Campeão com Happel pelo Hamburgo, o meia Michael Schröder, que atuou como lateral-esquerdo no mundial, defende o comandante. 

- Ele foi o maior treinador que já tive. Happel era muito bom na parte tática e nas orientações à beira do gramado. Também era muito duro, falava pouco. Lembro que ele  dizia que devíamos jogar nosso futebol, com a posse de bola, sempre atacando, independente do adversário - destaca o atual diretor das categorias de base do clube ao GloboEsporte.com. 
Ernst Happel fuma durante jogo. Ao lado, o banco de reservas bastante reduzido
No comando do Hamburgo, Happel foi bicampeão da Bundesliga. Eleito o terceiro melhor  treinador do mundo pela revista britânica Times, o austríaco foi responsável por dar a maior conquista ao clube: a Copa da Europa de 1983. Depois de superar a Real Sociedad na semifinal, sem maiores transtornos - os alemães chegaram à final com cinco vitórias, dois empates e apenas uma derrota - a tarefa na decisão não seria fácil. O adversário era o Juventus de Michel Platini, Dino Zoff e Paolo Rossi, invicto na competição, e base da Itália campeã do Mundo no ano anterior: seis jogadores da Azzurra eram titulares na equipe. 

- Foi, sem dúvidas, o gol mais importante da minha carreira. O melhor de se marcar - afirma Magath, o herói da conquista, autor do gol do 1 a 0, em Atenas. 
Dos 11 titulares do Hamburgo, quatro fizeram parte da Alemanha vice-campeã do mundo em 82: o lateral-direito Manfred Kaltz, o zagueiro Holher Hieronymus, o capitão Magath e o atacante Horst Hrubesch. O dinamarquês Lars Bastrup também atuava pela sua seleção. Mas... 

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Se até julho de 1983 o Hamburgo tinha o melhor elenco de sua história, o cenário seria o inverso seis meses mais tarde. O técnico Ernst Happel perdeu jogadores importantes ao longo da temporada, e o noticiário alemão despejava críticas sobre a falta de um comandante na equipe. 

O centroavante Horst Hrubesch, apontado como responsável por unir o grupo em torno da conquista continental, havia deixado o Hamburgo após a competição. Além do centroavante, que se transferiu para o Standard Liège, da Bélgica, o dinamarquês Lars Bastrup foi outro que deixou o clube, retornando ao futebol de seu país. Happel teve outras duas baixas essenciais para a partida ao longo do campeonato alemão: o atacante Jürgen Milewski e o lateral Manfred Kaltz, responsáveis pelas principais jogadas de ataque do Hamburgo, sofriam com lesões musculares. Os alemães apostavam no retorno dos dois jogadores para a partida, mas o frio, que chegou ao país três semanas antes do esperado, atrasou a recuperação. Eles acabaram ficando em Hamburgo. 
Wutke chegou a Tóqio com jejum de 900 minutos
Com um salário de 13 milhões de cruzeiros, Kaltz estava há dois meses sem jogar, deixando órfãos de jogadas ofensivas os recém-contratados Dieter Schatzschneider e Wolfram Wutke. Ambos eram alvos de duras críticas da imprensa alemã, por não suprir a ausência de Hrusbech. Para se ter uma ideia, Wutke chegou a Tóquio com jejum de gol superior a 900 minutos. Em 4 de dezembro, a Zero Hora noticiava o 'desespero' alemão na busca por reforços. No dia seguinte, outra epopeia: recuperar Kaltaz para a partida. Tudo em vão. Dentro dessas possibilidades, Happel levou o que tinha de melhor à sua disposição para o Japão. Dos 11 titulares que disputaram a final europeia Atenas, sete foram a Tóquio. 

O técnico gremista, Valdir Espinosa, que acompanhou uma partida do Hamburgo em setembro daquele ano constatou que a equipe não era a mesma que havia conquistado o título sobre a Juventus. A manchete de Zero Hora em oito de dezembro era clara: 'Espinosa aposta na decadência do Hamburgo'. 

A frase dita pelo meia Felix Magath ao Hamburger Bendblatt, após o término da partida resumiu o momento do clube alemão: 

- Não somos a sombra do que éramos no passado. 

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Diante da falta de opções disponíveis no mercado e das lesões que afligiram o elenco durante a temporada, o Hamburgo levou 15 jogadores para o Japão: A delegação alemã embarcou para o Japão com apenas 15 jogadores. Além dos titulares, três atletas sentaram-se ao lado de Ernst Happel no banco de reservas para a partida. Dois deles eram anunciados pela imprensa: o goleiro Uwe Hain, o zagueiro Dieter Brefort. O terceiro foi uma surpresa. 

Com uma lesão no joelho direito, a ausência de Von Heesen era tida como certa pela imprensa antes da partida. O jogador não atuava havia três meses quando pisou o gramado do Volksparkstadion na última partida do Hamburgo antes do Mundial. Aguentou pouco mais de 20 minutos e teve de ser substituído. 'Médico veta Von Heesen' era a manchete do jornal Zero Hora. 
Jornal alemão coloca em sua manchete após derrota:
Quem ficou de fora do banco no Japão foi Dieter Schatzschneider, com uma lesão muscular na coxa. Ele explica: 

- Uma injeção no joelho poderia fazer com que Von Heesen jogasse aquela partida, então ele estava sentado no banco como um possível substituto para a equipe. Como eu descobri que não poderia jogar depois do aquecimento, não tinha por que ficar no banco - afirmou ao GloboEsporte.com. 

O jogador foi flagrado pelo jornalista Marco Antônio Schuster, da Folha da Tarde, que escreveu em sua coluna 'Diário de Viagem': enquanto os jogadores descansvam antes da prorrogração e ouviam as instruções dos treinadores, Schatzschneider, o centroavante titular lesionado, dava autógrafos. A permanência de Von Hessen e a ausência de Schatzschneider no banco não fizeram diferença. Happel não fez nenhuma alteração na partida, prática comum do excêntrico treinador. 

*Eduardo Deconto, sob supervisão de Paulo Ludwig